Havia um cigano naquela escola. Não daqueles ciganos que metem medo, mas sim daqueles que não se excluíram da sociedade e conseguem passar por gente perfeitamente normal. Com sangue quente, é claro.
Era o Emanuel. Corria que se fartava. Aliás, éramos os dois extremamente rápidos. Naquela escola realizava-se uma pequena prova de atletismo, todos os anos. Ficávamos os dois sempre à frente, mas ele ganhava-me ano após ano. Farto de ser segundo, comecei a observar os seus movimentos: via que, no meu caso, tinha melhor ponta final, e que o meu grande erro era dar tudo no arranque, perdendo energias para o fim.
Estava no 2º ou no 3º ano e assim o fiz. Deixei-o tomar a dianteira, controlando-o à distância. Antes da recta final havia uma curva apertada, e sabia que aí o poderia ultrapassar. Dito e feito, tudo corria às mil maravilhas. Mas o “porco”, vendo-se a ultrapassar, empurrou-me contra a parede. Eu, estatelado, apenas o vi a correr até ao final, levantando os braços em sinal de vitória.
Com o corpo todo raspado, deu-me um ataque de fúria: peguei numa sapatilha e bati-lhe. Começamos os dois à pancada, mas nestas contas o meu azar veio à tona: um membro do clã, que vinha lançado para defender Emanuel, tropeçou e cravou os suspensórios em si mesmo! Resultado, veio a corja miúda toda lá do bairro, levei um enxerto de porrada em que me partiram a cana do nariz!
Esta história, todavia, teve um segundo capítulo. Para colocar água na fervura, a professora decidiu chamar o pai do Emanuel à escola. Como prova de boa-fé, o pai repreendeu o filho em público e ofereceu-me aquilo que seria um acto de boa fé.
“O Emanuel faz anos no sábado. Estás convidado”
Até à ocasião, estava toda a turma convidada menos eu. Mas lá acedi ao convite. Na festa comecei a comer queijo, que retirei dos bicos de pato, que coloquei de novo no local inicial. O pai de Emanuel não me perdoou.
“Não te dão educação em casa, mas dou-ta eu. Não sais daqui sem comeres os bicos de pato secos”
E lá estive eu, o resto da tarde, a comer os ditos bicos de pato(côdeas merdosas) para gozo dos meus colegas, que brincavam com uma tartaruga.
PS- Uma das minhas passagens predilectas vem do filme “Clube dos Poetas Mortos”:
“Façam da vossa vida extraordinária”.
Eu acrescento: “Mesmo sós, façam da vossa vida extraordinária”. Muitas vezes me dizem para ter cuidado com o que digo, com o que escrevo, pois posso passar por ridículo. Continuarei. Quem se ri não é lembrado.
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